"... sustento que um ato de fala é um ato corpóreo, e que a força do performativo nunca é totalmente separada da força corpórea: isso constituindo o quiasma da "ameaça" enquanto ato de fala ao mesmo tempo corpóreo e linguístico [...] em outras palavras, o efeito corpóreo da fala excede as intenções do falador, propondo a questão do ato de fala ele mesmo como uma ligação do corpóreo e forças psíquicas."



(Butler 2000:255)



quarta-feira, 23 de março de 2011

A tirania da beleza:

reflexões sobre a colonização do corpo na contemporaneidade

Resumo:

Considerando o fenômeno do culto ao corpo aprofundado na contemporaneidade bem como o aumento da insatisfação dos indivíduos com a própria aparência, o presente artigo buscou analisar alguns processos socioeconômicos que, historicamente, contribuíram para a formação de um amplo e lucrativo mercado direcionado aos cuidados corporais e, nesse aspecto, realizou uma reflexão acerca das novas formas de colonização do corpo presentes na “cultura do consumo”.

Historicamente o corpo tem se mostrado de várias formas e em algumas conjunturas ele tem sido fundamental para compreender e expressar as características da organização societal a qual se insere. Assim, embora o corpo humano seja constituído por elementos biológicos, ele é, sobretudo, uma construção sócio-cultural, de tal modo que, em qualquer sociedade, o corpo sempre estará submetido a um conjunto de normas e práticas de interdição, fruição, controle etc.
As modificações no corpo estiveram presentes em diferentes épocas e civilizações. A ornamentação e as marcações utilizadas no neolítico, as tatuagens e brincos dos povos maoris (nativos da Nova Zelândia), o embranquecimento da pele na antiguidade, o espartilho da era moderna, entre muitos outros, serviram aos mais diversificados fins: para embelezar, para marcar uma classe social, como meio de divindade, como modo de pertencimento ou de exclusão a um grupo ou em relação ao mundo natural etc.
Entretanto, a partir dos desdobramentos do capitalismo e do processo de secularização que se afirmam na Modernidade, ocorre a desvinculação do homem com o mundo natural, inaugurando o princípio da percepção da existência do indivíduo no interior de seu funcionamento corporal; ainda assim, a valorização da dimensão corporal coexistia e era secundária as utopias identificadas no início desse período (SILVA, 2001).
No século XIX, com o desenvolvimento e a expansão industrial capitalista, se necessitou disciplinar o corpo do trabalhador assalariado para este se tornar apto a acompanhar o ritmo da máquina e, com isto, auferir maiores lucros aos proprietários dos meios de produção. Por esses e outros aspectos, estabeleceu-se um rompimento com os padrões considerados elegantes até então; ao contrário de trabalhadores mais robustos, exigiu-se trabalhadores magros, classificados como portadores de grande destreza e habilidade.

Nesse momento, se consolidava na medicina uma concepção de mundo que instituiu, ao nível do saber e das práticas terapêuticas, uma vinculação entre medicina e ciência (sobretudo das duas principais correntes do pensamento científico da Modernidade: o Racionalismo e o Empirismo), do qual a objetividade, o certo e o indubitável na investigação do fenômeno enfeixavam o projeto central. Deste modo, a medicina (aliada à ordem socioeconômica), tomando o corpo como “objeto” homogêneo, atuou a partir das determinações específicas de uma sociedade de classes e criou tabelas de base para a definição dos valores da média da população em peso, idade e nas aparências físicas pré-determinadas. Tais tabelas estabeleciam os “pesos desejáveis” para os indivíduos e foram derivadas do critério de utilidade do mundo do trabalho. (POLACK, 1971) .
 
Por conseguinte, o rendimento necessário ao dispêndio da força de trabalho acabou se tornando o parâmetro fundamental daquilo que se denominou de normalidade. Segundo Silva (2001), a formulação das tabelas de base, é um dos exemplos das determinações socioeconômicas sobre o procedimento técnico-instrumental da medicina que ficam obscurecidas pela cortina da neutralidade dos números e de levantamentos empíricos extensivos. Ao se utilizar desses procedimentos, transformou-se a saúde em um sinônimo da capacidade objetivável de rendimento.
 
Após a segunda metade do século XIX, a emergência da fotografia no campo científico, decompondo e investigando os movimentos do corpo animal e humano, contribuiu ainda mais para desenvolver uma concepção do corpo que o compreendeu como uma máquina em ação. A medicina fez do movimento corporal um símbolo efetivo de saúde, um modo fundamental de expressão de qualidade de vida.
 
Assim, a estrutura industrial e o discurso médico contribuíram para o surgimento de uma consciência mecânica do corpo, indispensável ao desenvolvimento do pensamento esportivo. Ao conceber o corpo menos como uma entidade e mais como um processo, sobre o qual se podia intervir para adequá-lo e agilizá-lo, abria-se, então, a possibilidade para a remodelação e reconstrução do corpo. Mas foi com o aprofundamento da “cultura do consumo”[1] que o corpo passou a ser explorado como objeto rentável.
 
A disseminação dos esportes, o fenômeno da moda e o cinema, este último favorecendo a criação de ídolos através de Hollywood, ajustou a indústria de cosméticos à indústria cultural o que, por sua vez, contribuiu decisivamente nesse processo de valorização de ideais e padrões de beleza.
 
A superprodução industrial de mercadorias sustentando o american way of life (estilo de vida americano) e aprofundando a “cultura do consumo” de massas se lançou, após a segunda metade do século XX, ao mercado de bens e serviços destinados à manutenção do corpo. Impérios industriais, com atividades diversificadas, invadiram o mercado, produzindo aparelhos de ginástica, suplementos nutricionais, vitaminas ou ainda publicando revistas especializadas sobre boa forma, saúde, regimes alimentares e cuidados corporais (COURTINE, 1995)[2].
 
Todo esse arsenal se vinculou à indústria do lazer e do turismo, da alimentação e do conforto, formando, portanto, novas bases para uma colonização do corpo. Se num primeiro momento recomendava-se a dissimulação como meio de “sanar” os problemas físicos, usando roupas e produtos adequados, buscando uma “camuflagem”, após a “liberação do corpo” e da exposição do corpo nu, essa dissimulação foi substituída pela ênfase em torno da construção de uma beleza autêntica, sem dissimulações, oferecidas pelas mais diversas intervenções cirúrgicas.
 
Conforme explica Sant’Anna (2001), ao ideal do corpo máquina, produtor de energia, peculiar às sociedades industriais, acrescentou-se a imagem do corpo produtor de informações. Transformados em equivalentes gerais de riqueza, células, órgãos, genes, embriões, corpos humanos e não humanos começaram a gerar lucros elevados servindo ao utilitarismo biotecnológico.
 
A concepção de corpo atual está diretamente ligada ao desenvolvimento da medicina que, deste o século XIX, atribuiu conotações positivas à magreza, correlacionando o excesso de peso a inúmeras doenças. No entanto, mercados como os da publicidade, da estética, da moda são hoje os principais divulgadores de um corpo ideal. Procura-se, assim, instituir uma excelência corporal, que constitui o resultado do que deve ser atingido, ou do qual se procura aproximar-se.
 
Cuidar do corpo tendo em vista a melhor aparência vai se tornando, gradativamente, uma necessidade para os indivíduos. Esta necessidade de aperfeiçoar o corpo é seguida e estimulada pela expansão de conhecimentos concernentes ao corpo nas áreas de estética, alimentação, saúde e educação, além de técnicas e produtos que lhes correspondem. Estrutura-se, dessa forma, um mercado das aparências, representado por inúmeros profissionais especializados em tratamentos de pele, cabelo, gordura, pêlos, unhas etc e instrumentos de atuação que se encontra em livre desenvolvimento (instrumentos e produtos para modelar e alisar os cabelos, aparelhos de eletro-choque para fortalecer o abdômen, raio-laser para remover pêlos, máquinas de bronzeamento, agulhas contra celulite, shakes para emagrecer, entre muitos outros).

Desta forma, as relações que o mercado estabelece com a expectativa de corpo predominante são múltiplas, criando sempre demandas corporais e novas exigências aos indivíduos. A ciência assim como os meios de comunicação, por meio de sua suposta neutralidade e objetividade, penetrou em todos os recantos da vida. Além da poderosa tarefa de esquadrinhar e normatizar o corpo, oferecem os mais diversos meios para sua fabricação.

De acordo com a filósofa norte-americana Susan Bordo (1993), a fantasia de construir um corpo perfeito, esteticamente belo, magro e jovem é alimentada pelo capitalismo consumístico, pela ideologia moderna do interesse por si que se cristalizou na cultura de massa americana. Para a filósofa, o extremo dessa fantasia localiza-se na ciência e na tecnologia ocidentais que, originariamente vinculadas ao mau funcionamento, gerou uma indústria e uma ideologia alimentada pela fantasia do remodelamento, transformação e correção; uma ideologia do melhoramento e da mudança sem limites que representa um desafio à historicidade, à moralidade e à própria materialidade do corpo (BORDO, 1993). Diante disso, o eixo da problemática da magreza, tão incentivada nos nossos dias e que pode levar ao aumento da incidência de anorexia e de bulimia, situa-se na cultura de consumo que domina grande parcela das sociedades contemporâneas.

O domínio sobre o desejo no interior dessa “cultura do consumo” que o mercado institui está associado ao ideal cultivado da fabricação de um ser perfeito. Dietas, exercícios físicos intensos e muita disposição para sacrifícios e dores, são requisitos cobrados e estimulados, por demonstrarem a capacidade de força de vontade, metáfora cultural de uma expectativa normalizante de corpo e comportamento.
 
A historiadora francesa Michelle Perrot (1992) considera que a modelagem das aparências cria uma antropometria meticulosa determinando medidas ideais, instrumento de tortura para aspirantes do triunfo da norma[3]. “[...] A incorporação do ideal de elegância, gerador de anorexia, forma de depressão feminina, é o sinal derradeiro da armadilha das imagens. Daí a ansiedade crescente que as mulheres, doravante constrangidas à beleza, nutrem relativamente à sua aparência” (PERROT, 1992, p.178-179). Assim, o culto à magreza que se insere dentro da ditadura da beleza, cria um projeto de existência, gerando práticas disciplinares sustentadas pela construção que associou e, ainda associa, a magreza à saúde e ao esteticamente belo.
 
Nesse sentido, a configuração de valores direcionados ao corpo nesta sociedade merece um amplo debate, que resgate a possibilidade de transformação social, para que se possa impedir que a aparência e imagem corporal se sobreponham ao que, de fato, é o ser humano em suas potencialidades e, através de práticas emancipatórias, combater a tirania da beleza, a qual parece reproduzir “uma nova versão de colonialismo” legitimada, até esse instante, por grande parcela da sociedade.
 
Por fim, a tarefa de investigar a supremacia do corpo-aparência na sociedade contemporânea é inesgotável. É evidente que essa problemática necessita de um aprofundamento em várias perspectivas, contudo, neste espaço, apenas foi apontado, de forma geral e sucinta, algumas reflexões que nos parecem relevantes em relação ao presente fenômeno do culto ao corpo e do imperativo da magreza que o acompanha.

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[1] O termo “cultura do consumo” significa aqui, não apenas a compra de mercadorias para a satisfação das necessidades, mas também o consumo de imagens e de valores. Nesse sentido, ele pode ser entendido como um conjunto de símbolos que são criados e recriados associados aos bens materiais, produzindo comportamentos e novos modos de pensar, sentir e agir.

[2] É o caso, por exemplo, do grupo Weider, produtor de artigos de nutrição, fabricante de aparelhos de musculação, proprietário de ginásios, editor de revistas especializadas como Muscles & Fitness, Shape, Flex etc. Ver: COURTINE, Jean-Jacques. Os stakhanovistas do narcisismo. Body-building e puritanismo ostentatório na cultura americana do corpo. In: SANT’ANNA, Denise Bernuzzi (Org.). Políticas do corpo. São Paulo: Estação Liberdade, 1995.
 
[3] Há 20 anos, a maioria das modelos pesava 8% a menos do que a média da mulher padrão, hoje a taxa é de 23%. In: Reséuau Educacion-Médias. Lês stéréotypes dans les médias: femmes et filles. Disponível em (Acessado em: 22/10/2004).

por TATIANE PACANARO TRINCA

segunda-feira, 21 de março de 2011

ESPETÁCULO UM DIA DE PRAÇA

FOTO: Thiago Enoque

Praça do Campo Grande,  dia 20 de  Março.

luminosa tarde de domingo.
eu (poeira), beiçola e todos os curumins iluminamos a praça do campo grande com mais um espetáculo "Um dia de Praça". tomando como benção, uma roda completa de 360º, como uma abóboda cerúlea, circunferência das circunferências, centro do tempo.
sabiá, ainda se recuperando da "griptonita" registrou belos momentos, e como espectador naquele domingo, assistiu ao grande salto da sua notável aprendiz poeira, que segurou a roda com toda fé, generosidade e animação instrumental da querida beiçolinha.
pela manhã, no dique do tororó, já havia sido incrível, inacreditável, irradiamos luz junto as águas encantadas e aos orixás da bahia.
mas ali, na praça do campo grande, tinha tudo pra tomarmos um tropeço: uma orquesta ensaiava em um palco montado, um pula-pula no lugar errado.. 
mas logo encontramos ali, no coqueiro sonhador, o lugar ideal para realizar a nossa função.
em poucos minutos já tinha muita gente, e a roda só foi crescendo.
me senti nua ante os olhos do sol.. livre, pronta pra voar.

eu amo ser palhaça!

quinta-feira, 10 de março de 2011

FUIACO - UM FUINHO NA PAIEDE

FOTO: JOÃO MATOS


A CIA OBCENA DE ARTES constrói a partir da sua pesquisa em torno do “corpo antropológico” FUIACO – UM FUINHO NA PAIEDE, um espetáculo infantil de dança contemporânea baseado no universo fantástico e fabuloso dos seres antropomórficos, homens bichos, criaturas fantásticas e de mundos encantados. Como uma fábula, mistura luzes, música e dança na criação de uma dramaturgia lúdica coletiva, que assim como um quebra-cabeça, constrói e reconstrói figuras corporais que se completam.

A parede, o cercado do mundo, e em um único buraco, feito um olho mágico, a visão possível de um mundo encantado. Para uma criança FUIACO – UM FUINHO NA PAIEDE a brincadeira lúdica e fantástica do universo infantil, dramatizada em corpos que dançam suspensos no espaço.

Estréia em Abril no Teatro Gamboa Nova