"... sustento que um ato de fala é um ato corpóreo, e que a força do performativo nunca é totalmente separada da força corpórea: isso constituindo o quiasma da "ameaça" enquanto ato de fala ao mesmo tempo corpóreo e linguístico [...] em outras palavras, o efeito corpóreo da fala excede as intenções do falador, propondo a questão do ato de fala ele mesmo como uma ligação do corpóreo e forças psíquicas."



(Butler 2000:255)



domingo, 17 de outubro de 2010

A imagem e o olho do furacão.

Traçando um paralelo entre Jacques Aumont e Norval Baitelo


A imagem - como toda cena visual olhada durante certo tempo - se vê, não apenas no tempo, mas à custa de uma exploração que raramente é inocente; é a integração dessa multiplicidade de fixações particulares sucessivas que faz o que chamamos nossa visão da imagem.

O que nos trazem as imagens? Por que é que existiram em quase todas sociedades humanas? Como são olhadas?

* O espectador constrói a imagem, a imagem constrói o espectador.

Como o alimento das imagens é o olhar e como o olhar é um gesto do corpo, transformamos o corpo em alimento do mundo das imagens - refiro-me aqui a um dos tipos de “iconofagia” possíveis (cf. Baitello 1999 e Baitello 2000) - inaugurando um círculo vicioso. Quanto mais vemos, menos vivemos, quanto menos vivemos , mais necessitamos de visibilidade. E quanto mais visibilidade, tanto mais invisibilidade e tanto menos capacidade de olhar. Assim, o primeiro sacrifício desse círculo vicioso termina por ser o próprio corpo, em sua complexidade multifacetada, tátil, olfativa, auditiva, performática e proprioceptiva. A redução do corpo a “observador da observação” é o testemunho mais patente de um processo de perda da propriocepção (o sentido do corpo para a percepção de si mesmo). A transferência das vivências do corpo para o mundo das imagens significa também sua transferência para um tempo in effigie, congelado em um eterno presente e portanto, sem presente. A imagem de um presente será sempre a sua própria ausência. Tal qual já estava presente na palavra latina imago, a imagem se associa ao retrato da morte.

A perda do presente

Ainda a respeito do fenômeno da perda do presente e sua relação com a escalada dos sentidos de distância, Walter Benjamin aponta, de maneira assustadoramente visionária, quando define a perda da aura trazida pela reprodutibilidade técnica e a conseqüente substituição do “valor de culto” pelo “valor de exposição”. Enquanto a aura seria uma “aparição única de uma distância, por mais próxima que estivesse” (cf. Benjamin, 1980:480), as imagens em profusão, trazidas pela reprodutibilidade, deverão exercer a função de “aparições múltiplas de uma proximidade, por mais distante que esteja”. Benjamin nos apresenta a alma das transposições planas: superfícies multiplicadas de uma proximidade sem profundidade, aparências de tatilidades que se resumem a superfícies sob superfícies, repetidas e idênticas, repetição de presenças sem presente.
Dietmar Kamper se refere, em seu “Unmögliche Gegenwart” (Presente impossível) a um “triunfo do olho sobre os outros sentidos humanos. As máquinas de imagens trabalham com força total no mundo inteiro. Velhas e novas mídias da visibilidade se superam [a cada dia]. Uma parte cada vez maior das coisas que existem ocorrem [apenas] no olhar. (Kamper 1995:54). E acrescenta logo adiante: “Ver permanece superficial. A profundidade do mundo não é para o olho. E quando o olhar penetra, apenas aumentam novamente as superfícies e superficialidades. A era óptica já o provou ex negatio. Seu lema ‘Tornar visível todo o invisível’ era duplamente enganoso. Não se acercou do invisível e produziu uma nova invisibilidade.”(Kamper, 1995:57).

O corpo invisível

Dentre as instâncias sem dúvida mais atingidas por esse processo de crescente transferência de valor, por um lado, agregação de desvalor, por outro, como vimos, está o próprio corpo, em sua motricidade, em sua comunicabilidade, em suas qualidades biofísicas e em suas qualidades culturais, de arquivo vivo e memória da história e da cultura humanas.
A crescente transformação do corpo em imagem do corpo tem história e histórias. E sua inicial indiferença e posterior cegueira, como resposta a este processo, também. O que seria então o corpo que não se enxerga, não se sente, não se percebe? Por quais caminhos chega-se a esse grau de negação? E por que um corpo se torna invisível para si e para outros corpos? Um corpo invisível seria um não-corpo ou um corpo-máquina, um supercorpo, que, em busca de si mesmo, fugiu para a bidimensionalidade, a unidimensionalidade ou mesmo para a nulodimensionalidade? Haveria algum cenário possível, ainda que remoto, de superposição e entrelaçamento simultâneos de todas as realidades dimensionais em uma só, sem que uma se impusesse sobre as demais como instância recalcadora?

Verdade é que vivemos hoje sob a marcha triunfal das realidades bidimensionais que trazem em sua alma as fórmulas abstratas da nulodimensão: por trás de uma imagem sintética já não há sequer uma imagem concreta e muito menos um corpo de matéria tridimensional; há apenas o conceito abstrato de entidades numéricas, codificações sem tatilidades. Dietmar Kamper descreve, em uma singular brochura editada pelo Vilém Flusser Archiv, sediado na Kunsthochschule für Medien Köln, uma conferência performática de Vilém Flusser, na qual este expõe com o próprio corpo os quatro passos no caminho da abstração crescente: “Ele [Flusser] caminhou para trás, falando e gesticulando sobre o palco do auditório, até bater com as costas na lousa. Depois veio de novo para a frente do palco e lecionou (dozierte) sobre a tecno-imaginação e as imagens sintéticas.(...)Antes como depois, as sugestões de Flusser, de como se pode efetivar a volta dos retrocessos históricos da abstração, não me parecem convincentes. [Mas] a situação de o homem depender de seus artefatos e estar, como sujeito, submetido a eles raramente foi apresentada e demonstrada de maneira tão imparcial como o fez o último Flusser.” (Kamper, 1999:5-6)
O próprio Flusser escreve em seu Vom Subjekt zum Projekt. Menschwerdung (Do sujeito ao projeto. Hominização):

“Com o primeiro passo de retorno do mundo da vida (Lebenswelt) – do contexto das coisas que dizem respeito ao homem – nos tornamos manipuladores e a práxis que se segue é a produção de instrumentos. Com o segundo passo de retorno – desta vez saindo da tridimensionalidade das coisas manipuladas – nos tornamos observadores e a práxis que se segue é o fazer imagens. Com o terceiro passo de retorno - desta vez saindo da bidimensionalidade da imaginação – nos tornamos descritores e a práxis que se segue é a produção de textos. Com o quarto passo de retorno – desta vez saindo da unidimensionalidade da escrita alfabética – nos tornamos calculadores e a práxis que se segue é a moderna técnica. Este quarto passo em direção à abstração total – em direção à nulodimensionalidade – foi dado pela Renascença e atualmente está completo.”
(Flusser, 1998: 21-2)

Flusser nos oferece uma das chaves para o processo de desmaterialização do corpo, na perda crescente das dimensões do espaço do corpo e do seu tempo de vida (cf. Blumenberg ). Os efeitos sobre a pluralidade da existência sensorial são com certeza imprevisíveis, porque o processo atua sobre as bases da propriocepção, gerando um corpo que apenas se vê quando é visto, se observa quando é observado, jamais se sente porque não pode ser sentido. Assim, também se pode considerar que jamais o gesto civilizatório do olhar, a visão e sua hipertrofia tenham causado efeitos tão devastadores sobre a cultura e a existência humanas. Tal qual o olho de um furacão.

Referências
AUMONT, Jacques. L'image. 1990 
artigo de Norval Baitelo Jr.: O OLHO DO FURACÃO: a cultura da imagem e a crise da visibilidade.
FLUSSER, V. (1998) Vom Subjekt zum Projekt. Menschwerdung. Frankfurt: Fischer.

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