"... sustento que um ato de fala é um ato corpóreo, e que a força do performativo nunca é totalmente separada da força corpórea: isso constituindo o quiasma da "ameaça" enquanto ato de fala ao mesmo tempo corpóreo e linguístico [...] em outras palavras, o efeito corpóreo da fala excede as intenções do falador, propondo a questão do ato de fala ele mesmo como uma ligação do corpóreo e forças psíquicas."



(Butler 2000:255)



domingo, 12 de setembro de 2010

Mouna (silêncio em sânscrito)

                                   FOTO: ALDREN LINCOLN



A idéia do espetáculo Mouna, surgiu de questionamentos acerca do Silêncio. 
Como estudante de Dança na UFBA, entrei em contato com as idéias de John Cage e seu estudo sobre o Silêncio, o que despertou em mim a curiosidade e o interesse pelo assunto. Reuni colegas de turma - Luiza Agra e Renata Magnavita - que também estavam interessadas em trabalhar com o tema, e formamos um coletivo.
Partindo dos nossos entendimentos pessoais acerca do Silencio, relacionamos as idéias levantadas com a música O Silêncio de Arnaldo Antunes, inicialmente pensada como uma possível trilha sonora para a obra. Resolvemos nos aprofundar na pesquisa sobre o Silêncio articulada à linguagem da dança, o que culminou na configuração da obra Mouna.
Mouna (“silêncio” em Sânscrito) é para nós a corporalização do Silêncio e suas possibilidades. O estudo se dá através de diversas referências, entre as quais podemos citar como principais: John Cage, e a filosofia Zen. 
O Silêncio se mostrou muito além da ausência de sons, ou de um calar-se. É onde infinitas possibilidades acontecem. Preenche todos os espaços, e está em toda parte. “O Silêncio não é acústico, [...] é uma mudança da mente, uma reviravolta.”(John Cage).
Percebemos que em partes da cultura ocidental essa idéia de Silêncio não é experienciada, pelo menos não conscientemente. Vivemos em uma lógica imediatista, em que se buscam resultados, produtos. Somos bombardeados de informações e metas a cumprir. Nessa lógica, silenciar não parece ter finalidade. Dentro das nossas interpretações, silenciar atribui um valor especial a um “estar no mundo”, a própria existência humana. Experienciar o aqui-agora, dar atenção aquilo que acaba sendo engolido pela “correria” cotidiana, e direcionar a um autoconhecimento, pode levar-nos a um silêncio interior identificado como a chave para novas posturas diante a vida.   
Entendemos que existe uma incessante pulsão poética do corpo pelo prazer de cada instante, e esse é um dos motivos que impulsionaram a nossa investigação corporal. Buscamos estar neste lugar, dançar este momento presente, e dar atenção ao que passa despercebido. Ao mesmo tempo, buscamos vivenciar um dissolver de fronteiras, no sentido de sair do plano individual e perceber um pertencimento ao todo. Quando Cage afirma que “nenhum som teme o silêncio que o extingue e não há silêncio que não esteja grávido de som”; não se trata simplesmente de uma inter-relação entre som e Silêncio, mas, poder de eclosão, posto que são face e interface desse mesmo tecido. O Silêncio está além, é a idéia de que co-pertencemos a um todo, e nos contaminamos desse todo por sermos parte de sua existência, sua totalidade.

Em 2009, tivemos a primeira apresentação de Mouna no Teatro do Movimento, na Escola de Dança da UFBA. Lá usamos a obra 4’33 de John Cage (em formato de projeção), interpretada por David Tudor. Na “poética da escuta" de Cage, o ato de escutar constitui também um ato criativo. O ouvinte compõe de acordo com as condições dadas pelo ambiente e pelo compositor. A música consiste, justamente, em escutar as sonoridades e as qualidades particulares dos sons do espaço envolvente. Em Mouna dançamos esses Silêncios, mantendo uma relação com toda a atmosfera que se fazia presente, experimentando o que Cage denominaria por“multiplicidade de centros em estado de não obstrução e de interpenetração”.

Optamos por explorar o Silêncio do movimento, no seu esvaziar, criando um vácuo de tempo no interior do próprio movimento. Desprendendo o ritmo dos movimentos entre nossos corpos, e à medida que nos libertávamos desses ritmos, a velocidade aumentava ou diminuía desarticuladamente. Os gestos corporais decompunham-se, desembocando numa espécie de flutuação. Essa tentativa implicava em explorar o “acaso”, aplicada também em outros âmbitos. Utilizamo-nos do mesmo procedimento para compor a iluminação, a espacialidade, e as movimentações. Construímos através de nossos entendimentos partituras de movimentos individuais, que aconteceram no mesmo espaço-tempo, estabelecendo relações que se davam em tempo real. Ocupamo-nos em manter uma relação com o todo, como uma atitude, uma postura de ação que engloba (além de nós) a platéia, a projeção, tudo que compõe a cena.

                                       FOTO: NIKHIL
Com a entrada de uma nova integrante - Gláucia Rebouças - ao trabalho, e a vontade de continuar a pesquisa, fomos descobrindo novos caminhos e ampliando o conhecimento a respeito do tema. Isso abriu janelas para processos criativos e idéias de cena. Laboratórios corporais e discussões nos possibilitam trocas de informações e novas compreensões. As reflexões individuais a respeito do tema permeiam o nosso cotidiano, sendo os encontros, espaço de compartilhar as descobertas, inquietações e de experimentar o que consideramos “relevante”. Os laboratórios vêm nos permitindo trazer idéias para a dança, transformá-las, transcendê-las, e sempre gerar outras. Utilizamos múltiplos impulsos e recursos como: palavra (escrita ou oral), sons, músicas, espacialidades diferentes, muitas vezes filmamos estes laboratórios, e as filmagens tornam-se materiais de estudo.
Dos nossos experimentos organizamos “Fragmentos de Mouna”, instalação apresentada no IV Festival Viva Dança. Essa surgiu de nossas investigações, e da idéia de fazer uso do texto da música O Silêncio, de Arnaldo Antunes. Um experimento dentro das pesquisas de Mouna que acabou transformando-se em obra, trazendo novas propostas e idéias para cena.
Seguimos com o processo de Mouna, re-configurando a obra a partir dessas novas investigações e insistindo na exploração desse universo de possibilidades que o Silêncio traz para a dança, infinitos Silêncios que se cruzam e entrecruzam.

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